17 agosto, 2005

Escritor Urbano.

Um ilustre desconhecido

João Antônio tinha verdadeiro ódio da classe média, a que se referia como "classe mérdia"
Quando João Antônio Ferreira Filho morreu, em novembro de 1996, alguns diriam que ali entrava para a eternidade uma pessoa de vida desregrada, amante da sinuca e das tardes de conversa à toa pelos botequins de São Paulo e do Rio de Janeiro. Um malandro como tantos outros, que só deixa de herança uma trajetória recheada de passagens pitorescas e lendárias, mas que tão logo o caixão é fechado se soma ao anonimato das multidões. Entretanto, poderia ser levantado outro fato bem mais relevante. Aquele homem, batizado com o mesmo nome comum do pai, um comerciante de posses humildes de Presidente Altino, distrito da cidade de Osasco, na Grande São Paulo, também havia sido um dos dez maiores escritores brasileiros do século 20.
Se essa informação é de fato verdadeira, por que hoje João Antônio é tão desconhecido do público em geral? Como alguém que logo com sua obra de estréia, publicada em 1963, abocanhou dois Jabuti – o mais cobiçado prêmio literário do país – de autor revelação e de melhor livro do ano caiu em tamanho ostracismo?
“Eu tenho uma hipótese. Ele era de origem proletária e, na época da ditadura, tudo que os intelectuais da classe média queriam era expressar a opinião do povo. João Antônio fazia isso naturalmente. Esse aspecto ideológico o ajudou muito. Porém, nos anos 1980, houve uma desmobilização política e esse ambiente que o favorecia se desfez”, analisa Rodrigo Lacerda, editor da “Cosac & Naify”, que vem relançando os títulos mais importantes de João Antônio no mercado.
2005 marca o aniversário de 30 anos da novela, escrita na verdade uma década antes, considerada sua obra-prima: “Paulinho Perna Torta”. O enredo – uma espécie de biografia criminosa de um bandido sanguinário que dá nome à história, ambientada na boca do lixo da capital paulista – resume a contribuição de João Antônio para a literatura brasileira. Ele construiu uma obra consistente que retrata com precisão os tipos e a linguagem dos marginais, com todas as acepções que a palavra “marginal” pode conter. Porém, essa opção deliberada de eleger os excluídos como protagonistas de suas narrativas, que garantiu tanto sucesso e reconhecimento nos anos de 1960 e 1970, definiu um estilo que acabou rotulado. João Antônio morreu escritor consagrado e jornalista experiente, mas sem o mesmo prestígio do início da carreira.
Raízes
Um ferro de passar roupa esquecido na tomada e a besteira estava feita. O incêndio na casa de Presidente Altino custou os originais do livro “Malagueta, Perus e Bacanaço”, com que João Antônio nasceria para o mundo da literatura. É bem verdade que ele já havia publicado em jornais e revistas boa parte dos contos que compunham a obra e, além disso, tinha o hábito de mandar longos trechos de seus textos para ouvir a opinião das pessoas com as quais tinha se habituado a trocar cartas sobre os mais diversos assuntos – de memoráveis partidas de sinuca a tocantes ensaios sobre a solidão humana. Na verdade, não seria difícil recuperar o tempo perdido. Mas a versão de que o livro acabou reescrito por inteiro, em uma sala reservada da biblioteca municipal de São Paulo, construiu um mito que impulsionou as vendas.
A tarde de autógrafos, realizada em junho de 1963, contou com a presença de várias de suas amigas prostitutas da boca do lixo. Aquelas amizades que o filho cultivava desde os 15 anos deixavam a família – daquelas bem humildes que prezava pela dedicação ao trabalho honesto – de cabelos em pé. “De certa forma, podemos dizer que João Antônio foi uma ovelha negra, já que o pai o queria comerciante e, no início, ficou bem decepcionado com o veio literário do menino. Não via futuro algum neste sistema para quem enveredasse pela literatura. Ainda mais com o adolescente João Antônio já freqüentando o meretrício e fazendo amizades na malandragem”, conta o jornalista Mylton Severiano, amigo íntimo e autor de um livro que deve sair ainda este ano sobre a vida do escritor falecido em 1996.
Sua mãe era das mais preocupadas com os rumos que o filho boêmio vinha tomando. Além das incursões pela noite paulistana, desde pequeno ele tinha verdadeiro fascínio pelas rodas de choro de que seu pai participava, levando o bandolim. Por isso aprendeu por conta própria, só de ver e escutar, a tocar o mesmo instrumento do senhor João Antônio. “Mas ele comentava em entrevistas que sua mãe o proibia de sair com o pai, por achar aqueles encontros musicais coisa de ‘vagabundo’. Até um certo momento, ele comprou a idéia de que precisava ser um filho produtivo. Tanto é que cursou a faculdade de jornalismo”, explica Ana Maria de Oliveira, professora da Universidade Estadual de São Paulo (Unesp).

Ferréz: "João Antônio é eterno e único"
A publicação de “Malagueta, Perus e Bacanaço” por uma das mais conceituadas editoras do país, a “Civilização Brasileira”, somada ao sucesso de público e crítica, abriu muitas portas ao jovem escritor. A época de vacas magras, driblada por toda sorte de empregos, de bancário a office-boy de frigorífico, começava a ficar para trás com o sucesso do seu primeiro livro. João Antônio abandonou o posto de redator que então ocupava em uma agência de publicidade pouco expressiva – e que tanto o incomodava – e partiu para o Rio de Janeiro, contratado como repórter especial do caderno de cultura do “Jornal do Brasil”, o periódico mais influente naqueles tempos.
Tem início então um dos capítulos decisivos de sua vida: o jornalismo. Sua contribuição para os meios de comunicação ecoou mais forte durante o período da ditadura militar. Ele foi um dos principais ativistas da imprensa alternativa – batizada por ele de “imprensa nanica” – e passou por publicações importantes como os jornais “Movimento” e “O Pasquim”. De volta a São Paulo em meados da década de 1960, integrou a equipe que concebeu a melhor revista já feita no Brasil: a “Realidade”.
“Segundo sua esposa Marília, mãe do seu filho Daniel, foi o único momento em que ela o viu realmente feliz. Na ‘Realidade’ havia inovação estética, atitude política e o caixa de um grande grupo empresarial, a editora ‘Abril’. Lá ele conseguiu viver de escrever textos aos quais dava o status de literatura. No começo dos anos 1970, ele decide nunca mais ter emprego fixo e passa a fundir totalmente a literatura com o jornalismo”, conta Lacerda.
O segundo livro de João Antônio, “Leão-de-chácara”, só chegou às livrarias 12 anos depois de “Malagueta, Perus e Bacanaço”. Os contos e as novelas ainda refletiam vivências passadas nos salões de sinuca e nos bordéis que ele se habituara a freqüentar, mas já não estavam tão impregnados da dose autobiográfica que caracterizava sua primeira obra. Mais tarde, quando decidiu desenvolver as técnicas do jornalismo – como se pode ver em “Ô, Copacabana”, de 1978 – restringindo seu universo ficcional, João Antônio criou uma espécie de armadilha para a si próprio. “Ele foi muito associado a essa idéia da literatura de fundo jornalístico, que ficou um pouco datada. Isso também contribuiu para esse processo de esquecimento”, comenta Ana Maria.
Proletário intelectual
“Amo. Malucamente adoro três vagabundos numa noite paulistana com suas misérias, camaradagens e um relógio de pulso. É nessa batida o conto. Vai num intenso rebolado em que Bacanaço é rufião, Malagueta é um trapo e Perus, um menino. Os três vagabundos correm Lapa, Água Branca, Perdizes, cidade, Pinheiros à cata de algum dinheiro. Voltam quebrados, quebradinhos. Entra um naco de filosofia no conto e são apresentadas várias personalidades típicas da baixa malandragem – o patrão, o trouxa, o gaiato, as piranhas”. A passagem de uma das cartas, sempre redigidas com letra fina e caprichada, enviada à poetisa Ilka Lauritto, com quem ele travou intensa correspondência, evidencia o envolvimento visceral de João Antônio com a criação de suas personagens.
“Ele se fez porta-voz dos ‘desdentados’, como ele dizia. Foi desses casos que acontecem de cem em cem anos, uma pessoa que vem lá de baixo do barro do chão para mostrar a genialidade de seu povo, sem artificialismo algum, já que de lá vinha ele também”, analisa Severiano.
A obra de João Antônio preencheu uma lacuna que se arrastava há algum tempo: a criação de uma literatura urbana que desenhasse o cotidiano das pessoas que sobrevivem à correria frenética das grandes metrópoles. Tanto é que, logo de cara, foi comparado a outros escritores paulistanos que já haviam manifestado uma preocupação semelhante, como Mário de Andrade e Alcântara Machado. Porém, ser reconhecido como herdeiro desses grandes autores da literatura nacional era uma formalidade – para não dizer responsabilidade – que o incomodava demais. Por essa razão, sentia-se pouco à vontade em São Paulo. Além disso, também se achava pertencente ao mar, onde poderia se dedicar à atividade que considerava a mais linda do mundo: assistir ao vôo das gaivotas. Depois da breve passagem pela “Realidade”, não teve alternativa senão mudar para o Rio de Janeiro, no início da década de 1970.

Rodrigo Lacerda: "João Antônio era de origem proletária e expressava a opinião do povo naturalmente"
Na sua nova cidade, João Antônio consolidou sua atividade de jornalista e definitivamente entrou para a classe média, que ele tanto odiava – e a que se referia como classe “mérdia”. Na sua opinião, era dela a culpa pelas injustiças sociais do país, por desejar e reproduzir os valores da elite que comandava o Brasil há séculos, oprimindo ainda mais as pessoas que, como sua família, se amontoavam na periferia das grandes cidades ou eram esquecidos nos sertões país afora. “Desaprendi a pobreza dos pobres e aprendi a pobreza envergonhada da classe média”, escreve ele em “Abraçado ao meu rancor”, livro que narra uma de suas viagens à capital paulista, depois de sua mudança definitiva para o Rio de Janeiro. Em São Paulo, ele havia deixado a mãe semi-analfabeta e o pai que fora roubado pelos sócios depois de abrir uma pedreira. “A distância cultural entre ele e a sua família era difícil de suportar. Ficar em outra cidade era uma maneira de não sofrer com isso”, pondera Lacerda.
Além da opção em retratar aqueles que vivem à margem da sociedade, a obra de João Antônio também apresenta outra decisiva contribuição para a literatura nacional: as inovações de linguagem. Ele era um grande pesquisador do modo de falar típico das ruas e conseguia transportar para o papel uma realidade que até então era desconhecida do público em geral – mas com um domínio impressionante da norma culta. Essa capacidade de reproduzir de maneira natural a dicção popular era garantida por uma disciplina típica dos intelectuais. Em uma dessas agendas de telefone, João Antônio tinha o hábito de usar o índice alfabético para anotar as gírias que ouvia nas suas andanças pelas quebradas de São Paulo e do Rio de Janeiro. “Isso contradiz absolutamente a imagem do homem que vivia de porre, jogando sinuca. Ele construiu duas máscaras ao longo da vida. Primeiro, colocava-se como personagem de sua obra, como um malandro, o que tem um efeito muito interessante para o mercado editorial. Em segundo lugar, há o intelectual que está preparando a sua posteridade”, afirma Ana Maria. A professora é uma das responsáveis pela organização do acervo do escritor, abrigado no campus da Unesp, em Assis – interior de São Paulo. De acordo com ela, chama a atenção o zelo com que João Antônio arquivava todas as matérias de sua autoria publicadas em jornais e revistas, assim como as críticas da imprensa sobre seus livros. Sem dúvida, ele sabia que sua obra seria alvo de muitos estudos.
Legado
A primeira vez em que o ex-vigilante e ex-funcionário da cadeia de lanchonetes Bob’s – que atende pelo apelido de Ferréz – ouviu falar de João Antônio, estava domando a ansiedade por conta do lançamento de “Capão Pecado”, seu primeiro romance. A trama, um triste porém fiel panorama do cotidiano do seu bairro, o Capão Redondo, um dos mais pobres da cidade de São Paulo, é marcada pela forte carga de realismo. Nos corredores da editora Labortexto, responsável pela publicação do livro, ele escutou um comentário sobre a semelhança entre seus personagens e os tipos criados por aquele suposto mestre da literatura de que nunca tinha ouvido falar. Será que alguém já tinha se dedicado profundamente a retratar a vida dos marginais e dos excluídos, assim como ele? A curiosidade bateu fundo e o jeito então foi correr atrás de alguma obra daquele tal de João Antônio.
Passados cinco anos de sua chegada às livrarias, “Capão Pecado” pode ser considerado um best-seller para uma editora de porte modesto, com três edições e oito mil exemplares vendidos. Ferréz se tornou um escritor profissional, tem prestígio entre a crítica especializada por falar com propriedade sobre temas como pobreza e violência urbana. Atualmente, é dos poucos felizardos que consegue “sobreviver” apenas de literatura, assim como se propusera João Antônio em vida. Seu segundo romance, “Manual Prático do Ódio” – que traça o perfil psicológico de um bando de assaltantes – saiu em 2003 e conseguiu uma boa recepção no mercado. Além dos direitos autorais que recebe pela venda desses dois livros, Ferréz também tira algum dinheiro com sua coluna mensal na revista “Caros Amigos”, fora as palestras para as quais é convidado, quase sempre a fim de debater assuntos relacionados a exclusão social. Desde a primeira vez em que topou com “Abraçado ao meu rancor” em um sebo da capital, obra que inaugurou seu contato com o submundo de João Antônio, reconhece nele uma de suas principais influências.
O autor de “Malagueta, Perus e Bacanaço” pode ser considerado o precursor de um tipo de literatura que recentemente vem florescendo com um olhar sobre a periferia das grandes cidades brasileiras, com destaque para Paulo Lins – de “Cidade de Deus” – além do próprio Ferréz. No caso do escritor do Capão Redondo, as semelhanças entre sua vida pessoal e a trajetória de João Antônio saltam aos olhos.
Ele também perdeu os originais de seu primeiro livro por conta de um acidente. Só que no seu caso o vilão não foi o fogo. O telhado do barraco onde morava com a mãe, no bairro da zona sul de São Paulo, não resistiu a uma tempestade durante uma madrugada. Atordoado com a possibilidade de perder todos os bens da casa, deixou para trás a primeira versão de sua obra. Porém, a fatalidade também serviu para injetar sangue novo na imaginação de Ferréz, e ele reelaborou o enredo que se lê em “Capão Pecado”. Mas as semelhanças com João Antônio não param por aí. Os empregos pouco valorizados para conseguir algum dinheiro que sempre faltava no final do mês; a vontade furiosa de incomodar as elites; a defesa das origens proletárias. Hoje, Ferréz mora em uma residência um pouco mais confortável e resistente ao mau humor da natureza, mas não abandona por nada o Capão Redondo, onde passou a maior parte de sua vida. “A cada dia que passa, fico mais maloqueiro”, brinca.
Quando perguntado sobre as características comuns entre sua obra e a de João Antônio, Ferréz também identifica como principal ponto de tangência a marca do submundo das personagens. Tanto é que costuma se referir à sua produção como “literatura marginal”, expressão que dá nome a uma editora fundada por ele para veicular os textos de outros jovens moradores da periferia que engatinham na carreira – além de representar uma homenagem ao mestre.
Mas há importantes diferenças estilísticas entre os dois. A narrativa de Ferréz é mais documental, quase que uma transposição literal da fala das ruas. A ação também se revela mais intensa e dramática. “João Antônio, por outro lado, apresenta um caráter lírico que não tem lugar na literatura do Ferréz. Além disso, possui uma consciência da linguagem que é impressionante. Seu valor está menos no tema do que na forma com que esse tema é trabalhado. Com a linguagem usada para falar sobre sinuca, ele poderia discorrer sobre bridge. Essa é a grande novidade”, analisa Ana Maria.
João Antônio segue a trilha de outros escritores considerados malditos, como Lima Barreto, uma de suas principais inspirações. Porém, ao menos para a atual geração que desponta cheia de vontade de cutucar as feridas da precária justiça social brasileira através da literatura, ele é “eterno e único” – como o define Ferréz.

Um comentário:

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