Por: Elidiane Costa, diretamente da Bahia
Pensando que ainda era criança, esperando ao colo uma boneca de cabelos lisos, vestido estampado, imaginando dar-lhe movimentos e levá-la para passear, não a pude receber naquela cama da maternidade.Não a boneca com que tanto sonhava.Não era aquela da vitrine, à mostra na loja de brinquedos.O presente de aniversário recebido das mãos da enfermeira tinha movimentos próprios, e ao invés do vestido estampado, possuía apenas um lençol enrolado ao corpo.Chorava!Ora! Bonecas não choram.Melhor, somente aquelas que possuem pilhas e chupeta, ou até alguma parte sensível do seu corpo facilitando seu choro.Quase não tinha cabelos, os olhinhos fechados, ao contrário das mãos que buscavam agarrar algo, parecia buscar a segurança não existente aqui fora.Era irreal, afinal aquele cenário não possuía nenhuma semelhança com uma maternidade encenada, daquelas que costumava levar a Ana, a Joaninha para terem seus bebês.Olhando ao redor, também não havia o Renato, o Paulo, os pais dos filhos das duas.Não havia o pai da minha filha.Eu não tinha uma filha, não queria tê-la, não naquele momento, naquela situação.Queria a minha boneca, aquela de cabelos lisos e vestido bordado, sem movimentos reais. Não queria possuir aquela de poucos cabelos envolvida por um lençol e buscando o suporte do qual necessitava.O que tinha sido feito da minha vida?Onde estavam meus pais, meus amigos, parentes, alguém, qualquer pessoa que pudesse dizer:“É mentira, você só tem uma boneca”.Mas o tempo passava, a enfermeira já havia levado o bebê para o berçário e o que tinha ficado na memória ia de encontro com uma lembrança, aqueles dias de sol, quando ia brincar no parque, pipoca, sorvete...A vida era uma brincadeira, sem medos, sem responsabilidades, sem realidade.Após dois dias, ainda pela manhã fui acordada pela enfermeira, a notícia inevitável não me trouxe alívio e sim uma preocupação ainda maior, o médico havia me dado alta, era a hora de retirar-me da maternidade e voltar para o meu mundo injusto, não tinha mais casa, nem parentes, meus pais haviam me expulsado do meu lar.Voltei para a rua, o meu lugar. Minha cama agora era simples jornais, eu tinha um cobertor e algumas mantas que havia ganhado da enfermeira.Tinha que viver agora por mim e por ela, era de certa forma uma criança tendo que criar outra criança, sem conforto, dignidade, esperança.A partir daquele momento passei a perceber o que existia atrás dos olhos, atrás da face, o que queria dizer o outro lado da espada e em que eu precisava me agarrar para conseguir sobreviver.Eu e minha filha éramos meninas de rua, vivíamos, dormíamos em qualquer ponto dela.Ela iria crescer e conhecer sua história, saberia quem era sua mãe e não teria motivos para orgulhar-se dela, saberia que a teria trocado por qualquer boneca e tudo isso só para continuar com a minha vidinha, escola, casa, parque, sorveteria, mamãe, papai e um dia um casamento perfeito com um marido exemplar, que estaria comigo em qualquer situação.Mas, também saberia o que havia descoberto sobre o que há atrás dos olhos, atrás da face, o que quer dizer o outro lado da espada.Quase sem querer, esta era a minha realidade: Eu tinha uma filha.
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