02 março, 2005

Breve estória do subúrbio

Uma dose de autoridade

Desceu do ônibus e olhou no relógio: Quinze pras dez.
Talvez fosse melhor não parar no bar do Canarinho, mas no ringue do mal pressentimento o sim sempre derruba o não.
Que mal tem tomar uma dose só para abrir o apetite?
E além do mais está escrito no estatuto do subúrbio: É do direito de todo trabalhador que pegou no pesado o dia todo, de fazer uma visita no bar antes de chegar em casa.
É isso mesmo que seu Samuel irá fazer, jogar um traçado goela a baixo. Uma balinha de hortelã esconde o cheiro. E que se dane a esposa se perceber, já basta ter que agüentar o mestre da obra o dia inteiro.
Entrou no boteco cumprimentando os seus colegas que no momento dividem uma garrafa de cerveja e discutem um assunto desses de boteco:
- Que nada rapá, Teodoro fala da muié dele, mas é mó noveleiro também.
Seu Samuel dá risada e pede uma dose de rabo de galo.
Seguindo esta cena um carro da Rota pára em frente ao bar e descem quatro fardados com armas nas mãos. Um deles grita para que todos fiquem de costas na parede. Assustado seu Samuel deixou o copo cair no chão, se dividindo em vários pedaços, e o conteúdo foi respingar justo na calça do fardado que dava as ordens. Sem dar tempo para suspense, o mesmo foi de encontro ao trabalhador. Mandou que ele se virasse, deu um tapa barulhento no rosto dele e começou novamente a gritar.
- Você não tem o que fazer não?
Ao invés de estar trabalhando fica no boteco mendigando pinga. Lugar de vagabundo é na cadeia, e é pra lá que você vai. E ainda vai ter que lavar a minha calça.
O trabalhador quis se explicar:
- Mas eu tô...
- Mas é o caralho, vai se explicar com Deus, comigo não. Caminha pra viatura vai, pra dentro do chiqueiro que é o seu lugar.
Enquanto o policial levava o trabalhador pra viatura, os outros cidadãos eram revistados e o dono do bar levava uma bronca:
- Não respeita a lei do silêncio não?
- Mas ainda não é dez horas!
- Meu chapa dez horas é só no papel, nós queremos os botecos fechados ás nove.
O dono assentiu com a cabeça.
Após uns quinze minutos de averiguação, os policiais deixaram o local. Cada um dos que estavam no bar se recolheu para o seu canto.
Ás sete da manhã seguinte, dona Florência, esposa de seu Samuel, já estava apavorada quando recebeu um telefonema da polícia local.
O delegado noticiou o fato com delicadeza. Disse também que os bandidos não se conformaram só em roubar o seu esposo e o mataram com três tiros na cabeça.
Dona Florência ficou com o peso da saudade e com a responsabilidade de ter que criar os quatro filhos sozinha.
Seu Samuel deve estar bebendo uma dose celeste em outro lugar. Quem sabe lá não exista abuso de autoridade?

Sacolinha

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