Sábias Lambidas de um velho cão
(Texto de Claudia Canto)
Ela me olhou, o seio a mostra, num decote absolutamente intencional, um olhar cheio de ironia pedinte. Fingi desinteresse, passei a olha-la disfarçadamente, como numa opereta, nossos olhares se encontravam num ritmo fugidio, incansável, analizando-se orgulhosamente. Aquela mulher estava começando a me deixar curioso, tinha algo de diferente não sabia dizer realmente o que seria, estava me expondo a uma análise fria, exatamente igual aos malditos interrogatórios que já sofri. Muito tempo depois já cansado daquele cenário, resolvi chamar a garçonete, que logo se mostrou animada em lhe entregar meu telefone. Ela não poderia imaginar, que aquela brincadeira não era tão ingênua como estava parecendo. Não poderia prever, que aquele homem que ela estava interessada, era um homem marcado pelo cárcere com toda aspereza e agressividade. Um homem bomba, que mantinha o coração preso a exatos vinte dois anos, que era capaz de explodir nas mais delicadas situações. Aquele primeiro contato iria mudar as nossas vidas, sete números, que iriam torturar nossos destinos. Começava naquele momento, uma história que envolveria todos que estavam a nossa volta. Quanto a mim, não poderia imaginar, que ali estava alojada a criatura mais perspicaz, que encontrei na minha vida bandida. Fiquei esperando extremamente ansioso, como um adolescente preste a copular pela primeira vez, com um olhar absorto, estático, nervoso. Não pude acreditar na sua reação! Que gana arrogante, premeditada... Como pode ter feito aquilo, um despropósito. Pegou o telefone das mãos da garçonete, e como se fosse um pedaço de entulho, depositou em cima da mesa, sem ao menos ler, nenhum sinal de interesse, como se tivesse acabado de receber um panfleto qualquer de alguma propaganda mentirosa. Aturdido, passei a me interessar desmesuravelmente por ela, inquieto e cheio de sobressaltos, passei a olha-la com mais cobiça, ameaçador, como um cão, como meu cão Dick... Meu velho e querido Dick. Nunca esqueci meu cachorro Dick, éramos como dois gatunos á solta, quando Dick arrumava uma cadelinha, eu ficava imensamente satisfeito, era como se fosse eu próprio. Exercia sobre mim, um grande magnetismo. Pensava comigo: Quando eu crescer, vou ser macho igual ao Dick. Dizem que os cachorros absorvem a personalidade do seu dono, mas no meu caso, fui diferente eu absorvi completamente a personalidade dele. Ele agia diferente dos outros cães: cheirava a cadela inteirinha, depois lambia seu corpo com muita gana, um verdadeiro ritual dedicado a Vênus. Sempre acreditei que ele conversava com as cadelinhas, ficava observando de longe seu exorcismo, com um sorriso vitorioso nos lábios... Era um lindo vira - lata, inteligente e astuto como poucos. Íamos juntos buscar o jornal, o pão estávamos sempre unidos, unidos como dois foras da lei. Nos entendíamos pelo faro, hoje sei que meu Dick era um homem no corpo de um cachorro, astuto e viril, mais até do que muitos que conheci na cadeia. Como o Dick, gosto do cheiro do cio, do sangue, do suor nas entranhas, da animalidade do ato. Naquele dia o sol batia forte ali naqueles confins de São Paulo, ruas de paralelepípedos eram o alicerce de casas com rebocos incompletos e pássaros presos em gaiolas, que mais tarde viria a sentir na pele o gosto amargo de estar preso como eles. Inúmeras residências perpendiculares eram separadas por pequenas muralhas, que serviam de testemunhas nas rotineiras discussões entre os vizinhos. Meu primeiro contato com a justiça aconteceu quando tinha sete anos de idade, hoje ainda me lembro deste julgamento, cruel e genocida, que me trouxeram profundas impressões. Sai humilhado, embrutecido, em desamparo, sozinho. Foi também a primeira vez que tive contato com a morte. Das outras vezes, os golpes eram esquecidos com muita rapidez, logo que cessavam a dor, logo que saia a passear com o meu pai, que minutos antes açoitará o meu corpo frágil. Aquele maldito travesseiro de penas estava de novo ali reluzindo sobre sol. O travesseiro, era para o Dick, a própria personificação de um frango assado, pronto para ser saboreado. Por diversas vezes atrapalhamos seu intento, se pudesse se comunicar, jogaria-nos as mais sangrentas pragas, por frustramos sempre as suas tentativas de abocanhar o insidioso travesseiro. São Paulo, crescia desproporcionalmente, naqueles idos da decáda de sessenta, a poluíção se fazia a cortina da cidade. Chuva que inundava casas e atolava de lama, os pés dos famigerados trabalhadores, na grande maioria bravos imigrantes. Aquele maldito travesseiro exposto ao sol... Enquanto isto os bares das redondezas, fervilhavam de ébrios, que exaltavam sua masculinidade, comparando o tamanho dos pés, passavam longas horas a contar mentiras vãs, sonhando com mulheres que não eram as suas. E do outro lado da rua, suas esposas, se queixavam da falta do feijão com arroz, dos intervalos cada vez maiores de carinho e principalmente da decadência sexual do casamento. Aquele maldito travesseiro exposto no sol... A expulsar os sonhos insonháveis, daqueles que seriam responsáveis por uma das maiores tristezas, que tive na minha vida. Um simples travesseiro tirou a vida do meu melhor amigo, do melhor parceiro que já tive. Voou pena para tudo quanto foi lado, com uma só mordida, meu Dick, tinha acabado de assinar sua sentença de morte. Entre xingos, ameaças e gritos, ficou prometido ali naquele momento, que o meu amigo teria seus dias contados. Foi terrível, a dor mais cruel que senti, não podiam ter feito aquilo, me atingiram pelas costas, feriram o âmago da minha alma. A cena ainda é viva na minha mente, meu cachorrinho ali estendido no chão, agonizante, com um fio de vida, me esperando, sofrendo, sujo de sangue, banhado de vômito, restos de um veneno mortal que lhe ofereceram. Morreu também parte da minha inocência, enterrou-se parte da minha pureza de menino. Passei a me alimentar com raiva, ódio. Na minha cabeça de criança, procurava um meio de me vingar, sofri como um louco, eu era todo sofrimento, uma dor palpável e lenta. O quintal da minha casa era, meu depósito de brinquedos e idéias, e foi ali naquele pequeno espaço, que premeditei tudo: um velho tronco de uma árvore serviu de base, preguei diversos pregos pontiagudos, martelava cada um pensando na dor que meu Dick sentirá, foi com grande prazer que escondi de todos um velho tronco, que agora se transformará na minha primeira. Num esconderijo esperei o grande momento, como se aquele momento fosse diminuir minha dor. O filho da assassina uma criança de dez anos de idade, mais velho que eu, veio como um passarinho para minha armadilha. Sem piedade açoitei suas costas num ritmo alucinante, o sangue jorrava, enquanto os pregos ficaram encravados na suas costas. A fúria agressiva já estava incubada na minha alma, sem que os meus pais percebessem. O animal falou em mim, um animal de sete anos de idade. Meus pais não entederam que minha reação, era um sintoma do que eu seria anos mais tarde. O castigo viria de maneira errada, não consigo reproduzir toda a cena, juntando alguns pontos, lembro dos berros do meu pai, e aquela maldita cinta a inundar minhas costas de sangue vivo, a minha tremura infeliz. Minha cabeça a rodar, e as lágrimas a cair, naquele momento tive um único pensamento. Nunca mais teria um amigo de verdade.
Claudia Canto, é autora do livro "Morte ás Vassouras"
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