19 outubro, 2005

Referendo!!!

De arma na mão
(Ferreira Gullar)


O principal argumento dos que se opõem à proibição da venda de armas de fogo é que, se o bandido está armado, o cidadão comum tem o direito de também se armar. O que é um argumento legítimo em filmes do faroeste, onde impera a lei da bala.Sim, porque, na vida real, a coisa se passa de maneira muito diferente: termos uma arma na cintura ou na gaveta da cômoda não quer dizer que estamos protegidos do assaltante armado; na maioria das vezes, é o contrário, pois o fato de estarmos armados pode nos levar a atitudes desastradas e desastrosas.E sabem por quê? Porque não basta possuir uma arma para ser capaz de fazer uso dela. Além disso, nem todo mundo tem sangue-frio (ou coisa pior) para ser capaz de matar uma pessoa, ainda que seja um bandido. Eu, pessoalmente, não tenho.Imaginemos a cena. Façamos de conta que tenho uma arma em casa, guardada em alguma gaveta. Acordo ao ouvir um ruído estranho na sala. Será que o gato decidiu bagunçar meu coreto a essa hora da madrugada? Mas vejo que não: ele ressona enrodilhado e tranqüilo ao pé da cama. Corre-me um arrepio de medo pelo corpo: pode ser um fantasma?! Não, não pode ser, porque não acredito em fantasmas! Isto é, acho que não acredito...A essa altura, penso ouvir passos no corredor, ou melhor, algo parece se mover ali... Seria meu neto Mateus? Não pode ser, porque ele não tem a chave do apartamento e, mesmo que tivesse, não entraria em minha casa a essa hora e desse modo. Mais assustado ainda, sinto que aquela presença estranha se aproxima de meu quarto.- E se for um ladrão?!A hipótese de que poderia ser um ladrão me deixa ainda mais assustado do que se fosse um fantasma.- Se é um assaltante, deve estar armado! -digo a mim mesmo e acrescento: por sorte, ainda não tinha sido aprovada a proibição da venda de armas; pude comprar a minha.E, ao pensar isso, me ocorre que não me lembro de onde a guardei, o que me causa enorme desagrado, mas não surpresa, já que quase todas as coisas que guardo somem, nunca consigo saber onde as guardei. E isso se tratando de coisas que estou sempre usando; imagine agora um revólver, que está guardado desde o dia em que o comprei.- Não vou encontrá-lo! -digo para mim mesmo em pânico. E o ladrão, armado, está a poucos passos de mim, no corredor!As possibilidades são várias. Lembro-me de ter decidido que o melhor lugar para guardar o revólver era a gaveta da mesa de cabeceira, aqui ao lado da cama, pois estaria a meu alcance no caso de um assalto como esse que ocorre agora. Sim, foi aqui que o guardei! E me volto, abro a gaveta, tateio com uma das mãos. Nada de revólver!- Mas tem que estar aqui!Penso em acender a luz do quarto, mas logo desisto: o assaltante ficaria sabendo que estou acordado. Insisto em buscar o revólver na gaveta, levanto-me cuidadosamente para melhor procurá-lo, quando me vem à lembrança que o tirara dali. Sim, quando Paloma esteve aqui com Francisquinho, achei melhor pôr o revólver noutro lugar, fora do alcance do menino... O problema é: onde?Era urgente lembrar onde pusera a arma, porque o ladrão não iria ficar esperando no corredor até que a localizasse.Admitindo-se que ele preferiu se dirigir ao escritório, que está sempre de porta aberta e, àquela hora, vazio, dediquei-me a tentar descobrir onde, pela lógica, teria escondido o maldito revólver.- Terá sido no guarda-roupas? Mas, se foi ali, em qual das gavetas? Tem quatro gavetas externas e várias menores internas, onde guardo camisas, cuecas, meias... Na gaveta das cuecas não foi, porque essa eu abro todos os dias... E me vem então um pensamento aterrador: vai ver pus na estante menor do escritório. Se foi, estou perdido; o assaltante vai ter dois revólveres e eu, nenhum! É azar demais! Começo a me arrepender de ter comprado a arma.Mas aí uma luz acende no meu cérebro e me faz lembrar do lugar exato onde guardara a arma: sim, na única gaveta da cômoda que tem fechadura! Foi lá, tenho certeza. Mas e a chave da gaveta? Onde será que pus a chave da gaveta da cômoda?!Vamos admitir, por mais implausível que seja, que me lembrei de onde pusera a chave. Vou lá, pego-a, abro a gaveta e o revólver está efetivamente lá. Seguro-o, nervoso, saio andando na direção do bandido, que, supõe-se, está no escritório buscando o que roubar. Da porta, vejo-o agachado, mexendo na gaveta da escrivaninha. Ao clarão da luz da rua que entra pela janela, percebo que se trata de um garoto de uns 16 anos e que está armado. Aponto o revólver, mas não consigo atirar: é um menino. Fico com a arma apontada e grito-lhe:- Largue a arma. Está preso!Ele se rola no chão e, deitado, dispara um tiro certeiro em meu peito e me mata!Antes de soltar o último suspiro, ainda penso:- A polícia é que deve cuidar da segurança dos cidadãos. Afinal de contas, para que se paga imposto?

Folha de S.Paulo, 16 out. 2005.

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