10 abril, 2006

Debate!

Hamilton Borges Walê
Atividade permanente do Movimento Negro Unificado(MNU) na Penitenciária Lemos Brito/BA

Falcão, Ferréz, Daslu
O Quilombo vai falar.

Eu não consegui acompanhar todo o Documentário Falcão sem me remexer no sofá. Eu não li o livro, eu não falei nada por aí, até ver o quadro de Faustão e ler o artigo de Ferrez. Eu tava encolhido, na minha, “na moral”. Eu só escrevo quando sou provocado e neste país racista parece que não vou parar de traçar o que penso pelas letras. Existe um projeto de extermínio no Brasil, um genocídio calculado, implementado no cotidiano. Primeiro, quebram nossa alma e, quando vem a polícia, a enchente, e a conta do mês, nós já estamos praticamente mortos. Falo de um nós específico, não é esse nós geral de povo Brasileiro. Meu ”nós”, aqui, é afirmado pela lógica de povo preto, ou negro, como quiserem. Só não me venham com essa vergonha conceitual de afro-descendente pra despistar o conflito. O genocídio tá virando apelação e alavanca para dar ibope. Que maravilha! A máquina de moer gente da um lucro no “Big Brother” da chacina. Repito: programada pela lógica do racismo! Tô entrando no debate a partir de um lugar histórico, de um território político definido, sem essa de me dissipar no limbo da harmonia racial. Sou um homem preto, maloqueiro, desconfiado e articulado em torno de um poderoso movimento que abriu mais que fissuras e brechas no prédio gigantesco do racismo brasileiro. Fomos dinamite e arrombamos tudo, dominamos “a fita” do debate nacional, desmascaramos o mito da democracia racial e começamos a caminhar por nossas próprias pernas. “Bagulho imperdoável” para a supremacia branca de esquerda e de direita. Não sou inaugural, irmandade. Nem Ferrez é inaugural e nem Bill é inaugural. Tá todo mundo herdando algo de algum lugar. Eu saí da barriga fecunda do Movimento Negro Unificado, que pariu Milton Barbosa, Luiz Alberto, Regina, Luiza Bairros, Yedo Ferreira, Marcus Alexandro, Urânia do Carmo e “uma pá” de gente que luta desde 1978 contra o racismo. Maioridade merece respeito. O documentário de Bill e Celso Athaíde mostra nossa miséria cotidiana, o trauma, a subalternidade revoltada com fuzil na mão. A classe média branca adora isso: o terror de bandeja em seu quarto, servido frio e sem perigo; são nacos de realidade. Mas Falcão engana. Ali não tem nada de real, ali é tudo fabricação, convenção, todo mundo fingindo que acredita que só tem aquilo nas comunidades negras/pobres. É a miséria recortada por uma câmera de vídeo, de cinema; é entretenimento na desgraça, mas não mostra tudo. Portanto, não é real, é um olhar fechado em enquadramentos definidos pela cultura racista da exclusão. Têm brancos por trás dando pistas, é apenas uma janela do que vivemos. Neste cardápio ninguém se interessa pela organização, pela arte, pela cultura, pela posse de referenciais ancestrais de resistência, nosso luxo. Não! A classe média branca quer degustar miséria, já dissemos. Não se fala ali em racismo como entrada do banquete, não se mostra os brancos beneficiários e signatários do tráfico de drogas, de armas, de bebidas, de sexo, de violência. “Colé Dom! Vamo fala sério: os brancos tão numa boa em seu apartamento arejado e se falar esses troço aí, racista é a gente! Que se foda!”. A rede Globo, com a cumplicidade de parceiros de fé, despolitizou a morte de meninos pretos sob comentários racistas de gente do quilate de Glória Peres, toda rancorosa, nos apontando como o “eles” excessivos. Glória mobiliza meio país para por mais gente preta atrás das grades. É isso irmandade, eu também fico muito “puto da cara”, mas vou continuar respeitando MV Bill.O Rato Bill não é nenhum vendido, falta-lhe, sim, perceber na trajetória do Movimento Negro, ferramentas de combate para não ser “tirado” como palhaço junto ao jovem sobrevivente da chacina de todo dia. Não pode permitir ser “comediado” pelo escroto dominical, o tirano do Faustão que nos tem como anomalia. Faustão é letal para nossa inteligência nacional, Bill continua sendo aliado. Ferrez repete que não se vende. Fez livros e vários escritos falando da favela, da periferia, tudo etiquetado e aplaudido pela esquerda branca e ele diz que não é vendido. Cada um tem seu preço, o meu, como dizem os Zapatistas, é um mundo transformado e justo e livre. MV Bill também não se vende, nem se vendeu, pode estar equivocado, mas pelo meu olhar ele não é vendido. É mais um preto querendo fazer algo com um microfone na mão e navegando pela mídia nacional sem cuidado com a armadilha. Ferrez também faz sua crítica a Bill, via a difusão do mal e do desprezo aos pretos na Folha de São Paulo. Daí eu concluo: Rede Globo, Folha de São Paulo, a diferença é o Cachê. Ninguém tocou no ponto central do debate: o racismo. A esquerda branca que aplaude Ferrez e que compra seus produtos não percebe o racismo como contradição nessa sociedade desigual. Querem tudo diluído em suas análises puramente econômicas da sociedade: a luta de classes. Um socialismo caduco que não é alternativa para nada. Como pan-africanista eu vejo a luta por outras lentes. Se a rede Globo não pautou o vídeo Falcão sob a perspectiva do Movimento Negro, a Caros Amigos também não. Fica este texto a disposição para ser publicado, não precisa nem pagar. A esquerda é assim: quer falar no genérico de mulheres, de negros, de transexuais, de homossexuais e de indígenas sob seu olhar e encantamentos. Para eles, a Daslu é apenas o palácio abominável do consumo e para nós a Daslu, a Rede Globo, o Estadão, a Folha de São Paulo e a Internacional Socialista são todas pertencentes a uma irmandade racista que nos despreza como sujeitos políticos. Esta foto acima é do Complexo Penitenciário aqui da Bahia, onde o racismo tem sua face mais branca e cruel, onde nós do MNU, da CUFA/BA, Cooperativa Uhuru e da Campanha Reaja tentamos levar esperança à juventude negra encarcerada, toda preta e indignada. Todos inimigos de Dona Glória Peres, que quer penas cada vez mais duras; trancas cheias e fechadas para os pretos, degradação e tortura. Ela quer ressuscitar a lei de crimes hediondos, que só chega aos pretos. Dona Glória se mobiliza. É a mesma que emite opinião sobre nossa tragédia como se fosse ato ficcional de sua emissora. De qualquer modo, meu papo com o Bill vai ser sempre de crítica e respeito. Respeito sempre. Agora, cá pra nós, existem os privilégios na república do cabelo bom, esses clarinhos de favela com sotaque de periferia, que não pensam duas vezes para bater em parceiros com a arbitragem dos poderosos. “Tão por fora.” Periferia não é tudo misturado não. Tem “boy” na periferia. E, geralmente, é o branco pobre: o dono do Armazém, do Mercado, da Padaria. Branco pobre é cheio de privilégios, “tá ligado”? É este o debate que Falcão não pautou que Ferrez não passou nem perto e que a Daslu vai ter que encarar quando os pretos marcharem juntos para tomarem o que lhes pertence. É desse jeito. Não sou poeta marginal, estou no centro do problema. Sou maloqueiro, colecionador de pedras, de poesia e indignado.

Hamilton Borges Walê
Movimento Negro Unificado/BA
Campanha Reaja ou será Mort@
08 de Abril de 2006

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Sobre choro e nó na garganta

Trecho do livro "Dente-de-leão: a sustentável leveza de ser" - Escritor Sacolinha